Uma reflexão acerca de qual seria hoje o melhor "caminho" para a sociedade ocidental moderna estabelecer relações com as culturas remanescentes de sociedades ancestrais, sobretudo as de origem mesoamericana, nos leva de imediato a reconhecer a impotência constitutiva desta primeira diante dos problemas que os contatos iniciais engendraram em ambas as sociedades.
A essência do problema parece residir na pouca flexibilidade e incapacidade de adaptação que o ocidente apresenta em relação às frustrações que veio a enfrentar após ter empreendido gigantescas conquistas materiais. O fato é que nenhuma tecnologia, razão ou poder econômico responde mais pelo anseio de felicidade humana tal como foi o sonho renascentista, iluminista ou capitalista. As filosofias e ciências aplicadas contém em potência o que o homem contemporâneo não é capaz de mover em sua interioridade transformando estas forças em realidades atuais. E o dilema do contato entre os povos é de longe a questão ainda sem respostas conhecidas, ao contrário disto, é crescente a xenofobia.
Nesse contexto, a questão "indígena" surge na pauta dos governos ocidentais como um entrave entre o possível e o impossível.
É possível e necessário, no entanto, que tal reflexão ocorra, e que a partir dela se encontrem os meios efetivos para nortear tais relações entre as sociedades, ainda que as dificuldades históricas criadas sejam grandes. É justamente a questão do relacionamento com a diversidade étnica e cultural que, amadurecendo, poderá criar modelos de convívio, trocas culturais, e finalmente, leis para garantir níveis de cooperação fundamentais para a sobrevivência de toda a espécie humana. Além desta questão ser em si absolutamente necessária no sentido já mencionado, ainda que pensada apenas em termos de "ajustes compensatórios pelos erros históricos cometidos", é aprofundada pelo fator ambiental, que amplia sua emergência, na medida em que as transformações climáticas e intensificação das desigualdades sociais, surgem como conseqüências diretas das formas primeiras de relacionamento entre estes dois mundos: o ancestral e o moderno. Contudo, é importante observar, antes de julgar erros cometidos, que a questão é viva, pois a história não encontrou seu fim, senão em alguma teoria que ignore a possibilidade da existência humana perseverar e avançar por mais alguns milênios. Assim, temos que a investigação é acima de tudo sobre o relacionamento que "o homem mantém com a natureza", seja com a sua própria ou com o meio ambiente onde vive.
Deste modo, em nosso percurso, manteremos o espírito científico tanto quanto seja possível, porém, encontraremos impasses e contradições sem considerá-las prejuízos acadêmicos, posto que a realidade contemporânea nos leve justamente a reconhecer a necessidade de romper limites para fazer ciência onde até então ela não se admitia como tal.
Analisaremos alguns autores que tratam das questões do contato entre as sociedades moderna e a ancestral, e das imagens do "selvagem"criadas a partir de depoimentos e registros de aventureiros e exploradores, e posteriormente, de antropólogos, que deram sentidos diferentes para as bases da investigação antropológica. Observaremos antes a convergência de alguns pontos de vista, mais do as possíveis oposições entre eles, tendo em vista pensar sobre como as colaborações destes investigadores reiteram canais para o entendimento do problema do convívio atual entre estas sociedades.
Citamos de início Claude Lévy-Strauss: " Foi no século XVI, com a descoberta do Novo Mundo, que o problema das descontinuidades culturais se colocou à consciência ocidental de modo súbito e dramático". Como sugerido por Strauss, a questão se abre desde o início, que é na verdade muito antes do contato efetivo com as culturas ancestrais em solo americano. As noções do "outro", da diferença negativa, do inimigo "bárbaro", estão impregnadas nas raízes do pensamento europeu, retroagindo à Antigüidade greco-romana que justamente alimenta o fluxo de imagens predominantes no período em que o europeu se lança aos mares e "descobre o Novo Mundo". Deflui dessa situação em que se deu o primeiro contato uma forma de apreensão condicionada à dificuldade de admitir o índio como um "igual", um homem, isto, além do empreendimento se orientar pelo componente econômico que a descoberta encerrava desde sua elaboração no velho mundo. Toda a lógica ocidental que orienta as relações iniciais se pauta pela conjectura sobre a humanidade destes "seres" que habitam o Novo Mundo. Assim, é a partir daquele léxico científico e religioso, motivado pelas prerrogativas da expansão territorial e do capitalismo emergente, que se formulam as normas de conduta do conquistador.
Passados alguns séculos de enfrentamentos, da transfiguração étnica, marcados pelo massacre de comunidades inteiras de índios resistentes a ocupação, da expulsão constante destas sociedades que viviam em terras cobiçadas pelo empreendimento europeu, de submissão destas sociedades à leis estranhas ao pensamento ameríndio, e finalmente, da consolidação da dominação do europeu sobre o território americano, uma nova fase tem início, desta vez marcada pela recém nascida ciência positiva, sob o pretexto de uma tentativa de salvar povos que não foram salvos.
Strauss menciona Auguste Comte: " Comte critica os perigos de uma teoria unitária do desenvolvimento social e cultural. Ele diz que é preciso estudar o desenvolvimento como uma propriedade específica da civilização ocidental..." O perigo está no método investigativo, o erro é comparar aspectos entre as sociedades ancestrais e a sociedade moderna afim de avaliar níveis de desenvolvimento.
Assim, a questão da presença ou não de "humanidade nestes povos" cedeu posteriormente à questão do seu "desenvolvimento" social e cultural que, em verdade, preservava em si a mesma essência, camuflando a apreensão deformada do ocidente, para considerá-lo um objeto científico, agora posto à prova para justificar teóricos em vista de modelar sua ciência, seja Condorcet, Diderot ou Rousseau. O foco migra para uma questão interna, é o europeu construindo uma explicação para o mundo inteiro a partir de si mesmo. Assim, quando Comte critica as teorias sobre a descontinuidade social e cultural pautadas pela noção de "desenvolvimento" e aponta para a necessidade de compreendê-lo como uma característica do ocidente moderno, não o faz por reconhecer a autonomia destas sociedades ancestrais perante o modelo ocidental, por admitir que elas possuam igualmente uma ciência, arte e política, mas sim para reajustar o rumo das ciências humanas na europa. As deformações presentes nas visões sobre o índio não desaparecem, apenas assumem um caráter diferente.
Strauss menciona também o marxismo como sistema filosófico inovador em dois pontos para a compreensão do problema do desenvolvimento destes povos ancestrais. Em síntese, diz que segundo Marx, a civilização ocidental não só não teria alcançado seu desenvolvimento sem as descobertas que vieram do contato com as civilizações primitivas, como também promoveram o subdesenvolvimento destas pelos séculos consecutivos de exploração e pela brutal interrupção do processo histórico natural das mesmas. Neste caso, Strauss, nos conduz a um ponto crucial: teriam as civilizações primitivas buscado o caminho da dominação da natureza e encontrado um "similar" ao modelo industrial ocidental sem ter tido o contato com estas técnicas?
Para Strauss existe a relação intrínseca de complementaridade entre o desenvolvimento e o subdesenvolvimento. A rigor isto é lógico. Idéia que é de certo modo compartilhada por G.Ballandier e M.Sahlins, no sentido de que o desenvolvimento, é uma expressão do modelo capitalista, e engendra formas de poder, de apropriação dos recursos humanos, técnicos e materiais que por exigência da lógica de suas premissas, cria desigualdades crônicas, que tendem a aumentar tanto mais aumenta sua capacidade de apropriação e de concentração de poder do capital. A esse respeito cito também Istiván Mészáros, filósofo nascido em Budapeste, discipulo de George Lukács: " Evidentemente, portanto, o sistema do capital, em todas as suas formas concebíveis ou históricamente conhecidas, é totalmente incompatível com suas próprias projeções - ainda que distorcidas e estropiadas - de universalidade globalizante. E é enormemente mais incompatível com a única realização significativa da universalidade viável, capaz de harmonizar o desenvolvimento universal das forças produtivas com o desenvolvimento abrangente das capacidades e potencialidades dos indivíduos sociais livremente associados, baseados em suas aspirações conscientemente perseguidas."
Desse ponto de vista, o que é pertinente admitir pensar sobre uma política de compensação para com as sociedades ancestrais, irremediavelmente vencidas pelo modelo ocidental? Política esta que supostamente teria a tarefa de garantir o ingresso destas sociedades no mecanismo do mundo moderno, regido em quase sua totalidade pelo capital, que por sua vez absorveria as "capacitações e produtos culturais", bem como os conhecimentos desses povos. Fato que em verdade seria apenas mais uma forma da consolidação do processo de dominação ocidental, atenuado sob o slogan da criação de "benefícios" que estas comunidades receberiam.
Estes povos ancestrais não requerem mais do que nosso respeito, vistos então como grupos autônomos e capazes de gerir seu destino dentro do contexto atual. Se a ajuda material é necessária, se há serviços que são imprescindíveis para a preservação de suas sobrevivências que estão a nosso alcance é dever considerar nossa capacidade de ajudar, tanto quanto é preciso cooperar com refugiados de zonas de guerra, com sobreviventes de regiões devastadas por catástrofes naturais. As relações com estes povos ainda não chegaram a seu bom termo, não se consolidam como consequências de um evento perdido no tempo sem que se possa responsabilizar ninguém pelos equívocos, não se trata de um crime que prescreveu. As relações ocorrem neste instante mesmo em que refletimos.
A esse respeito cito o relato de Ailton Krenak, membro do povo Krenak: "No amplo evento da história do Brasil o contato entre a cultura ocidental e as diferentes culturas das nossas tribos acontece todo ano, acontece todo dia, e em alguns casos se repete, com gente que encontrou os brancos, aqui no litoral, 200 anos atrás, foram para dentro do Brasil, se refugiaram e só encontraram os brancos de novo agora, nas décadas de 30, 40, 50 ou mesmo na década de 90. Essa grande movimentação no tempo e também na geografia de nosso território e de nosso povo expressa uma maneira própria das nossas tribos de estar aqui neste lugar."
Diante deste relato outras formas de compreender o contato vêm à tona.
Não há uma data que delimite cronologicamente "o contato", o Abril de 1500 ainda está por ocorrer para indivíduos remanescentes destas sociedades ancestrais. É importante ter em mente a extensão do território brasileiro, que ele não possui uma ocupação regular, correspondendo antes a grandes fluxos migratórios impulsionados em geral por razões econômicas - ciclos da cana de açúcar, café, minérios, borracha e assim por diante. Deste modo a presença de grupos étnicos não contactados confirma a ideia de Ailton Krenak de que o contato ainda está em andamento e deve ser compreendido agora como "encontro".
O que ocorre é que as imagens que prevalecem da cultura moderna ocidental, daquilo que já conquistou, isto é, da sensação de confiança que a ciência ocidental plantou na mente contemporânea, acaba por acentuar as dificuldades de se refletir sobre o momento atual, pois é tamanha a presunção sobre a dominação irrestrita do planeta, que por um decreto desapareceram os mistérios, eliminando a presença de elementos "estranhos ao progresso", dentre os quais estão estes índios desconhecidos. Porém, o planeta se mostra igualmente a todos, mantendo-se em transformação para além destas concepções sobre sermos "outros" ou "nós".
Cito Ailton Krenak a esse respeito: "Quando a data de 1500 é vista como marco, as pessoas podem achar que deveriam demarcar esse tempo e comemorar ou debater de uma maneira demarcada de tempo o evento de nossos encontros. Os nossos encontros, eles ocorrem todos os dias e vão continuar acontecendo, eu tenho certeza, até o terceiro milênio, e quem sabe além desse horizonte. Nós estamos tendo a oportunidade de reconhecer isso, de reconhecer que existe um roteiro de um encontro que se dá sempre, nos dá sempre a oportunidade de reconhecer o Outro, de reconhecer na diversidade e na riqueza da cultura de cada um de nossos povos o verdadeiro patrimônio que nós temos, depois vêm os outros recursos, o território, as florestas, os rios, as riquezas naturais, as nossas tecnologias e a nossa capacidade de articular desenvolvimento, respeito pela natureza e principalmente educação para a liberdade."
A disposição para o diálogo parece muito favorável, segundo afirma Krenak, falta-nos o mesmo espírito para pensarmos em liberdade sobre o que se impõem como a realidade humana. As propostas estão postas: "Hoje nós temos a vantagem de tantos estudos antropológicos sobre cada uma das nossas tribos, esquadrinhadas por centenas de antropólogos que estudam desde as cerimônias de adoção de nome até sistemas de parentesco, educação, arquitetura, conhecimento sobre botânica. Esses estudos deveriam nos ajudar a entender melhor a diversidade, conhecer um pouco mais dessa diversidade e tornar mais possível esse contato. Me parece que esse contato verdadeiro, ele exige alguma coisa além da vontade pessoal, exige mesmo um esforço da cultura, que é um esforço de ampliação e de iluminação de ambientes da nossa cultura comum que ainda ocultam a importância que o Outro tem, que ainda ocultam a importância dos antigos moradores daqui, os donos naturais deste território. A maneira que essa gente antiga viveu aqui foi deslocada no tempo e também no espaço, para ceder lugar a essa ideia de civilização e essa ideia do Brasil como um projeto, como alguém planeja Brasília lá no Centro-Oeste, vai e faz." argumenta Krenak.
O retorno imaginário a um estado de harmonia que compatibilize os dois mundos é atraente do ponto de vista da experiência estética e da militância, sem dúvida alimenta sonhos e utopias essenciais para a preservação da natureza humana, a meu ver, sendo, portanto necessários.
As teorias sobre o contato interétnico nos revelam talvez mais do que o necessário para compreendermos que caminho é o mais acertado.
O "poder político", e suas transformações durante o processo histórico das sociedades é um aspectos importantes nas teorias de Ballandier.
Percebemos em seus escritos que a presença do ocidental desarticula as estruturas de poder e lideranças naturais das comunidades ancestrais.
Surgem então dois sistemas que não se compatibilizam: o tradicional e o moderno. Esquemas de antigas solidariedades se transformam e dão lugar a práticas que privilegiam o indivíduo em detrimento da sociedade, a lealdade ao colonizador disputa com a que era exclusiva dos líderes ancestrais, instala-se um "jogo duplo": “ os súditos têm a possibilidade de fazer "jogo duplo" entregando-se ora a um, ora a outro desses sistemas, segundo as conjunturas e interesses em tela." O fascínio criado pelo contato com o colonizador e a sedução que a posição das novas lideranças , não tradicionais, passam a ocupar na comunidade, assumem prioridade no indivíduo, levando-o a buscar a realização das metas que o destaquem junto ao colonizador, pois é incapaz de compreender a totalidade do processo em que está envolvido.
A dessacralização do poder local é um dado importante dessa transformação das estruturas sociais, levado a cabo pela religião que chega também com o colonizador. Fica rompida assim uma complexa rede simbólica que mantinha a unidade entre a esfera política e religiosa, diluindo os elementos que conferiam a identidade do indivíduo e a história futura de seu povo. Ballandier traz à tona outro ponto crucial para nossa reflexão: a questão da linguagem.
Do confronto de símbolos e interesses distintos dos poderes tradicionais, nasce uma nova linguagem na comunidade, que no entanto, não está apta a dar conta do processo de transfiguração étnica que corre na comunidade O discurso tradicional não encontra paralelos na língua "estrangeira" para expressar seu universo simbólico, no entanto, as disputas que ocorrem nessa nova ordem social estão sob as regras do colonizador. A falta de identidade que decorre da incapacidade de articular os princípios tradicionais na língua "oficial" fundamentam uma gradativa deterioração de lideranças ancestrais, criando cisões profundas entre as facções pró modernização e as que resistem às transformações impingidas pelo colonizador.
Este processo está presente na fala de Krenak: "E tanto os Kraí como os Nape sempre aparecem nas nossas narrativas marcando um lugar de oposição constante no mundo inteiro, não só aqui neste lugar da América, mas no mundo inteiro, mostrando a diferença e apontando aspectos fundadores da identidade própria de cada uma das nossas tradições, das nossas culturas, nos mostrando a necessidade de cada um de nós reconhecer a diferença que existe, diferença original, de que cada povo, cada tradição e cada cultura é portadora, é herdeira. Só quando conseguirmos reconhecer essa diferença não como defeito, nem como oposição, mas como diferença da natureza própria de cada cultura e de cada povo, só assim poderemos avançar um pouco o nosso reconhecimento do outro e estabelecer uma convivência mais verdadeira entre nós."
Se o processo de dominação colonial foi devastador para as sociedades ancestrais, a saída do colonizador destes territórios não foi menos prejudicial.
Uma vez que a identidade e estrutura simbólica dos indivíduos foram rompidas, apresentando agora traços estranhos à tradição que incompatibilizam as antigas relações dos indivíduos com o espaço geográfico: " Acumularam-se os efeitos da colonização e da descolonização: a primeira degradou em demasia os poderes antigos para que estes possam remodelar-se sob um aspecto modernista; a segunda ainda não pode provocar,além dos limites étnicos e com suficiente intensidade, as mudanças que fariam da nova estratificação social o único gerador da atividade política moderna." conclui Ballandier.
Temos assim, que a mera tentativa de estabelecer termos de comparação entre os modelos políticos ocidentais e as lideranças tradicionais não pode levar senão ao equívoco. Não há porque comparar, como já dissemos antes, seja no sentido da ideia de desenvolvimento ou de liderança política tal como a pensamos – partidos, representatividade, votos ...
É fundamental saber que não ocorreu uma "descoberta do Novo Mundo", mas a invasão de um território habitado, que não houve um processo de transição política que levasse em conta os habitantes desse território como indivíduos portadores de direitos, identidade, religiosidade, ciência, arte e cultura, mas sim um violento ato de dominação militar empreendido durante séculos consecutivos.
O ocidente chega às novas terras com as certezas que brotam de um regime tingido pelo terror das doenças, da fome e da pobreza, são filhos de um mundo onde não há o suficiente para todos, um mundo de desigualdades. O índio desconhece estes abismos da alma, da desolação do pecado e do inferno cristãos, da morte pela desigualdade na distribuição dos bens. O índio vive num mundo de infinitos recursos, tudo está em abundância a seu redor, há o Sol, as águas, os frutos, as raízes e na floresta ele pesca e caça, sendo cada ato seu a plenitude de toda a sua coletividade, que lhe confere uma história milenar, um lugar no tempo e no espaço: "Desde os primeiros administradores da Colônia que chegaram aqui, a única coisa que esse poder do Estado fez foi demarcar sesmarias, entregar glebas para senhores feudais, capitães, implantar pátios e colégios como este daqui de São Paulo, fortes como aquele lá de ltanhaém. Nossa esperança é que o desenvolvimento das nossas relações ainda possa nos ajudar a ir criando formas de representação, formas de cooperação, formas de gerenciamento das relações entre nossas sociedades, onde essas instituições se tornem mais educadas, é uma questão de educação. Se o progresso não é partilhado por todo mundo, se o desenvolvimento não enriqueceu e não propiciou o acesso à qualidade de vida e ao bem-estar para todo mundo, então que progresso é esse?" critica Krenak.
Estamos diante do que é a noção de desenvolvimento, riqueza e civilização. Strauss e Sahlins criticam tais noções, apontando o preconceito que marca suas elaborações ao longo do processo histórico, determinando índices irracionais para aferir os povos ancestrais.
Sahlins, em Antropologia Econômica, menciona: “ Mera economia de subsistência, lazer limitado, salvo em circunstâncias excepcionais, busca incessante de comida, recursos naturais pobres e relativamente incertos, ausência de excedente econômico...” Aponta o uso de uma terminologia antropológica inadequada para compreender as sociedades que vivem em um regime de afluência, que não concebem a finitude dos recursos naturais ou a apropriação de excedente em vista de garantias ou poder sobre os demais indivíduos. Nasce dessa ótica uma deformação constitutiva que se prolonga até nossos dias. Constatamos o choque de visões quando em 2000, por ocasião dos eventos de comemoração dos 500 anos do Brasil em São Paulo, lemos no artigo de Nelson Aguilar, escrito no volume consagrado às "Artes Indígenas": " Os Ticuna viram o mesmo tipo de máscaras produzidas e usadas por eles na atualidade sob a etiqueta de outra tribo que habitou o mesmo território outrora, os extintos Jurupixuna. Os indígenas reclamaram a posse das peças, cujo eventual destino foi questionado por José António (antropólogo português). A propósito das máscaras , a resposta foi serem abandonadas na própria terra dos Jurupixuna até se converterem em pó. Os adornos introduzidos num cerimonial vivem sob um estatuto de proteção durante o tempo a que servem o ofício. Depois são largados. Guardam a duração de uma pintura corporal. A participação lhes dá a vida. A museologia pertence a um regime de vida em que a acumulação de bens desempenha um papel fundamental e no qual a escolha se efetua na direção do tudo ter em detrimento do tudo ser índio."
O cerne do conflito entre a ancestralidade e a modernidade também está neste núcleo de onde cada visão retira seu sentido de ser no mundo.
Noções de desenvolvimento não são uniformes no contexto moderno tampouco. As comparações entre os modos de vida dos "selvagens" e do civilizado conduziram ao assentamento de que não é possível estabelecer um critério universal que assegure um modelo ideal. As facilidades de obtenção de recursos que os antigos habitantes do território americano desfrutavam não é mais uma realidade, bem como não há slogan que encubra a violenta desigualdade entre os civilizados, subdivididos em camadas, subcamadas, destrinchados em estatísticas, os indivíduos perdem seu direitos civis e ganham o correspondente em direitos do consumidor, sejam os ricos brancos do Hemisfério Norte, os mestiços pobres do Hemisfério Sul, os ambientalistas, os neofascistas e toda sorte de neologismos que os determinem como pertencentes a uma classe social: " Um dos principais autores do debate sobre pós-modernismo, o arquiteto Charles Jenks, caminha na mesma direção e chega a cunhar um nome para a nova classe social, o cognitariado ( em óbvia alusão ao termo proletariado ).”
A pós-modernidade marca a tentativa teórica de rompimento com aquilo que julga ter sido superado do período moderno. As diferenças podem inclusive existir no mais das boas vontades, no entanto, o que vigora é a inépcia do homem civilizado em relação a ele mesmo. Infinitamente capaz de se desconhecer, se vê na encruzilhada de pressões que engendrou ao longo dos últimos séculos, das quais não se vê responsável e por isto, sem culpas, deve destemidamente se libertar, emancipar-se e lançar-se em seus projetos. O fato é que o palco onde este ator exerce seu papel, julgando entender as estruturas que o amparam em suas criações já não suporta o peso de sua tragédia sem mostrar fissuras. O rangido do tablado se incorpora à cena e invade o diálogo sobre a necessidade do "desenvolvimento sustentável". O mais novo de todos os modos de desenvolvimento, quiçá o último possível.
Tal modelo desenvolvimentista seria " a nova ideologia ecológica, propiciaria maior iniciativa de ação , se caracterizaria por ser "multi científica", possibilitando um arco de alianças amplo entre "vários tipos de intelligentsia técnica" e - via o rechaço ao domínio sobre a natureza - intelectuais humanistas.", conforme Gouldner, 1980., em citação de Gustavo Lins Ribeiro, no artigo Ambientalismo e Desenvolvimento Sustentável.
Uma luz no fim do túnel parece a noção de comunalismo de Gisli Pálsson, dentre as opções atuais, a que mais compatibiliza os setores produtivos com os conhecimentos ancestrais ou naturais. Segundo Pálsson " Agir em termos de conceitos que têm consequências tão involuntárias é, sem dúvida, bastante irônico. Ainda mais irônico, frente às realidades de esgotamento de recursos, é que as pessoas às vezes adotam a atitude fatalista de que o esgotamento é simplesmente um ingrediente inevitável do progresso econômico." A mesma lógica norteia a noção de que todas as sociedades evoluiriam ou desenvolveriam processos de apropriação e industrialização dos recursos naturais igualmente, como se isto fosse algo constitutivo da natureza humana.
Porém não é o que pensam os representantes dos povos indígenas, como Krenak: " A idéia mais comum que existe é que o desenvolvimento e o progresso chegaram naquelas canoas que aportaram no litoral e que aqui estava a natureza e a selva, e naturalmente os selvagens. Essa ideia continua sendo a ideia que inspira todo o relacionamento do Brasil com as sociedades tradicionais daqui, continua; então, mais do que um esforço pessoal de contato com o Outro, nós precisamos influenciar de maneira decisiva a política pública do Estado brasileiro."
Para Pálsson " o paradigma do comunalismo difere dos paradigmas do orientalismo e do paternalismo - noções que mantém variações de ações de domínio e apropriação econômica da natureza - por rejeitar a separação de natureza e sociedade e as noções de certeza e monólogo enfatizando, ao invés disso, contingência e diálogo."
Em detrimento de uma visão que nasce para o "progresso científico" em meados de 1400, e cresce nas vozes emancipadoras de Galileu e Bacon, o homem se reconcilia com "sua natureza" e se vê nela, vivo dentre e em relação permanente com o entorno, cooperando com uma milagrosa e misteriosa rede de interdependência que une cada ínfima parte do planeta num só jogo de existir.
A sacralidade é posta novamente, mas como um elemento distintivo da consciência sobre o respeito para com os entes vivos, com as cadeias de cooperação que sustentam a vida como um todo.
" Neild (1989: 239) sugere uma abordagem hermenêutica para a tradução, que enfatize a natureza recíproca das jornadas; assim, se o processo de tradução pode ser descrito como um caso amoroso, uma teoria adequada na tradução deve reconhecer a função da empatia e da sedução. O autor alcança o tradutor, alterando sua consciência do mesmo modo que o tradutor altera o texto", esta é a forma que Pálsson indica ser a melhor para o relacionamento com as sociedades tradicionais, sem o que não se estabelece o diálogo e incorre-se no etnocentrismo.
Krenak endossa a questão afirmando que "Se continuarmos sendo vistos como os que estão para serem descobertos e virmos também as cidades e os grandes centros e as tecnologias que são desenvolvidas somente como alguma coisa que nos ameaça e que nos exclui, o encontro continua sendo protelado. Tem um esforço comum que nós podemos fazer que é o de difundir mais essa visão de que tem importância sim a nossa história, que tem importância sim esse nosso encontro, e o que cada um desses povos traz de herança, de riqueza na sua tradição, tem importância, sim. Quase não existe literatura indígena publicada no Brasil. Até parece que a única língua no Brasil é o português e aquela escrita que existe é a escrita feita pelos brancos."
A questão da formulação de políticas públicas adequadas para o convívio com as sociedades remanescentes de povos ancestrais no Brasil apresenta mais aspectos positivos do que negativos, se considerarmos a fala de Krenak. Mais entusiamador é o trabalho que os futuros antropólogos, etnólogos e botânicos terão pela frente face às necessidades de encontrar palavras para traduzir o que estes povos encerram em seu imaginário e conhecimentos sobre o território que habitam ainda hoje. Certo é que não se fará nada disso, se antes a qualidade do pensamento ocidental não for pautada apenas pela razão instrumental e pelos vícios que advém dela. Será o caso de introduzir o ingrediente que Pálsson reconheceu como o amor, para a partir dele verificar novos limites para alcançar a excelência.
"Esse entendimento de que somos povos que temos esse patrimônio e essa riqueza tem sido o principal motivo e a principal razão de eu me dedicar cada vez mais a conhecer a minha cultura, conhecer a tradição do meu povo e reconhecer também, na diversidade das nossas culturas, o que ilumina a cada época o nosso horizonte e a nossa capacidade como sociedades humanas de ir melhorando, pois se tem uma coisa que todo mundo quer é melhorar. Os índios, os brancos, os negros e todas as cores de gente e culturas no mundo anseiam por melhorar." Ailton Krenak.
BIBLIOGRAFIA
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RIBEIRO, Gustavo Lins. Ambientalismo e Desenvolvimento Sustentado. Nova Ideologia/Utopia do Desenvolvimento. In Revista de Antropologia, volume 34. São Paulo, 1991;
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